Impulsionados pela alta do leite, novos produtos lácteos têm surgido nas prateleiras dos supermercados. Apesar de possuírem rótulos e formatos de embalagens semelhantes aos derivados dos leites já conhecidos pelos consumidores, os novos produtos contam com ingredientes diferentes e até novas nomenclaturas.

Com a mudança, o consumidor pode levar para casa uma “mistura láctea condensada”, em vez de leite condensado; o requeijão, trocado por “mistura láctea sabor requeijão”; e o queijo ralado, pela “mistura alimentícia com queijo ralado”.
De acordo com a professora do Departamento de Nutrição da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisadora do NUPPRE (Núcleo de Pesquisa de Nutrição em Produção de Refeições), Ana Carolina Fernandes, de uma forma geral, os novos produtos possuem uma semelhança: o soro de leite.
O líquido é obtido a partir da coagulação do leite e, conforme a pesquisadora, “costumava ser descartado pela indústria”, mas por ter um impacto ambiental negativo, “virou matéria-prima presente massivamente em produtos ultraprocessados”.
Consumidor pode não perceber o que compra h5u3s
É importante ressaltar que essas alterações são permitidas e regulamentadas nos órgãos competentes, como o MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) ou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e, a princípio, não fere nenhuma lei.
Como pontuado, o grande problema é que as diferenças visuais entres os novos lácteos e os produtos já marcantes na memória do consumidor são mínimas e chegam, em alguns casos, a se resumir a pequenas letras nos rótulos.

Muitas das novas embalagens também apresentam imagens que remetem ao leite – como vacas, pastos, tonéis e líquidos brancos – e são colocados nas mesmas prateleiras que os produtos tradicionais.
O que está por trás da mudança? 3z2351
A professora de Economia da Univille (Universidade de ville), Jani Floriano, explica que as movimentações recentes da indústria dos produtos lácteos está ligada a uma série de fatores: sazonalidade; escassez de matéria prima no mercado e a Guerra da Ucrânia.
Jani explica que a época em que o leite chegou a custar quase R$10 nos mercados, já é naturalmente um período de baixa produção leiteira. “E quando têm queda da oferta, aumenta o preço”, diz.
Mas, se é um acontecimento natural, porque nos outros anos o preço do produto não aumentou tanto assim? Segundo Jani, a situação começou a se desenhar já durante o verão, entre os meses de dezembro, janeiro e fevereiro, “em que Santa Catarina ou por um forte estiagem”.
“Essa estiagem fez também com que os pastos e própria produção de insumo alimentício para os gados, acabou também diminuindo. E fez com que a produtividade das vacas caísse bastante”, explica.

Além da sazonalidade e a estiagem do verão, outro grande fator foi a Guerra na Ucrânia. Ela explica que produtos básicos para a produção leiteira, como fertilizantes, insumos, milho e soja, aumentaram muito seu valor no mercado internacional.
Por conta disso, “o problema do preço do leite neste período de maio, junho e julho, foi justamente somar todos esses fatores, além de que a gente já está vindo de um processo inflacionário”, explica a professora.
De acordo com a Sondagem Especial realizada pelo Observatório Fiesc (Federação das Indústrias de Santa Catarina) e pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), a guerra entre Rússia e Ucrânia provocou aumento dos custos de insumos e matérias-primas em 70,7% das empresas industriais e da construção de Santa Catarina.
O produto final e derivados, por sua vez, tem seu preço elevado de acordo com os custos de produção. “Quando você tem um preço de um produto que é essencial na economia e ele aumenta, é que gera esse efeito cascata na economia. Está tudo mais caro, mas é porque os insumos para a produção desses outros produtos também encareceram”, finaliza.
Nessas horas, a saída para as empresas é substituir esse principal ingrediente por outro “mais barato”, a fim de tentar equilibrar o valor final do produto.

O ponto negativo é que esses novos lácteos possuem sua qualidade nutricional e sensorial prejudicadas, tendo, em grande parte das vezes, as trocas “sendo por alimentos ultraprocessados, de qualidade nutricional piorada e cujo consumo aumenta os riscos à saúde”, segundo a pesquisadora Ana.
Prejuízos nutricionais e culinários 4x6s3m
Além de uma possível confusão na hora da compra, a troca da matéria-prima por uma mais barata, preocupa a especialista. A professora e pesquisadora pontua que esses insumos, como é o caso do soro de leite, possuem um conteúdo de proteínas, gordura e cálcio bem menores que o do leite puro, que “por consequência, diminui a qualidade nutricional dos produtos lácteos”;
“A adição de soro de leite também implica em um produto mais líquido. Dessa forma, para manter a cremosidade (característica de iogurtes, creme de leite, requeijão, leite condensado e creme de leite, por exemplo), há a necessidade de adicionar ingredientes para engrossar o produto, como gelatinas (nos iogurtes) e amidos (que aumentam o teor de carboidratos), além de aditivos alimentares (espessantes)”, explica Ana.
A pesquisadora também pontua que o comprometimento das características sensoriais, por consequência das alterações nos ingredientes desses produtos lácteos, também leva ao uso de outros aditivos alimentares, como corantes e aromatizantes.

“Por exemplo, o “doce de soro de leite sabor doce de leite” pode conter aromatizantes de leite, de leite em pó ou de doce de leite, mais corantes amarronzados (como os caramelos); a “mistura alimentícia com queijo ralado” pode ter mais amido do que queijo, e por isso ser adicionado de “aroma de queijo” e corantes amarelos”, explica.
Além disso, em muitos desses produtos há ainda a adição de gordura vegetal, denominação que geralmente esconde o processo de hidrogenação aplicado a essa gordura, que seria a gordura trans industrial.
“A gordura trans industrial tem baixo custo, mas é reconhecidamente e indiscutivelmente danosa à saúde, tanto que sua adição aos alimentos já foi restrita e será proibida no Brasil a partir de 2023. Ou seja, se retira a gordura natural do leite, considerada saudável quando consumida como parte do produto lácteo original, e se adiciona uma gordura altamente prejudicial à saúde”, diz.
Desmistificando os novos produtos 3s70a
Segundo Ana, as imitações de manteiga também podem vir misturadas com margarina, produto também mais barato e considerado menos saudável (ultraprocessado), “mesmo quando feita de gordura interesterificada, que vem substituindo a gordura trans industrial, mas cuja segurança do consumo é também questionada, por já terem sido encontradas evidências científicas de malefícios à saúde”.
O “pó para preparo de bebida sabor leite”, comercializado de forma semelhante ao leite em pó, pode ser adicionado de gordura vegetal e de açúcar.

Da mesma forma, a “mistura de creme de leite”, comercializada de forma semelhante ao creme de leite, pode ter como primeiro ingrediente o leite desnatado (em vez da gordura do leite), levando à adição de gordura vegetal, açúcar e outros espessantes (amidos e aditivos), além de aromatizantes sabor manteiga.
A “bebida láctea”, comercializada de forma semelhante ao iogurte, pode ter como primeiro ingrediente o soro de leite (em vez do leite), seguido do açúcar.
Ou seja, além da troca desses ingredientes, “como agravante, esse consumo muitas vezes pode ocorrer sem o consumidor saber, pelo fato de serem comercializados de forma muito similar aos originais mais saudáveis, podendo levar o consumidor ao engano no momento da escolha”, finaliza Ana.
O que dizem as empresas?
O ND+ entrou em contato com a Nestlé, Becel e Aurea, para que pudessem se posicionar, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta matéria, nesta terça-feira (06), por volta das 12h30. O espaço segue aberto para as empresas se manifestarem.
Fique ligado! 1z6p2c
Uma das formas de não comprar um produto ao invés de outro, é conhecer os elementos do rótulo. O ND+ separou quatro dicas para os consumidores saberem realmente o que estão levando para casa.
1 – Preste atenção na denominação de venda do alimento
Essa informação aparece normalmente em letras menores na parte frontal do rótulo. É ali que o consumidor vai saber se está levando um leite condensado ou uma mistura láctea, por exemplo.

2 – Atenção a palavra “sabor”
Se a denominação de venda do alimento tiver a palavra “sabor”, isso significa que o produto traz compostos como aromatizantes, que imitam e simulam as características sensoriais de um ingrediente ou do alimento inteiro, como o leite.
3 – “Nova fórmula”
Alguns fabricantes também acrescentam informações como “nova fórmula” ou “novo produto” no rótulo, ainda que mantenha o nome comercial, a logomarca e as cores tradicionais daquele item.

4 – Analise a lista de ingredientes
É importante ficar atento à lista de ingredientes, que aparece na parte de trás do rótulo. Eles são descritos em ordem decrescente – do mais ao menos usado. É motivo de atenção se o produto lácteo traz “açucar”, “xarope”, “gordura vegetal” ou “amido” como os primeiros ingredientes.
Aplicativo Desrotulando 4p2k3f
Outra dica, é o aplicativo “Desrotulando”, que oferece orientação alimentar e avalia a qualidade dos produtos disponíveis nos supermercados por todo o Brasil.
O aplicativo, criado em 2016, funciona como uma biblioteca colaborativa. Na sua memória estão os rótulos dos mais diversos alimentos industrializados disponíveis nas gôndolas de supermercados.
Os produtos são avaliados em uma nota de 0 a 100 de acordo com o seu grau de processamento — quanto mais processado, pior; quanto mais próximo do in natura, melhor — e conforme os ingredientes, como aditivos, que pioram a nota. O 100 corresponde à classificação excelente e o zero, à muito ruim.

O objetivo é auxiliar as pessoas a encontrarem produtos menos processados, com menores teores de ingredientes ruins. Sanar as dúvidas sobre rótulos, tabelas nutricionais e, ainda, propagandas enganosas em alimentos.
Para consultar a qualidade de um alimento, você pode abrir o app e então escanear o rótulo de um produto, ou pesquisar pelo que deseja consultar. Caso ele esteja na base de dados do Desrotulando, o perfil, com nota e classificação, será exibido. Caso o produto não tenha sido incluído, qualquer usuário pode fotografar o rótulo e de forma colaborativa enviar para ser avaliado pela equipe do aplicativo.