Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la. A frase escrita no auge do Iluminismo pelo filósofo irlandês Edmund Burke define com precisão a história da Beira-Mar Norte, em Florianópolis.
O futuro indica que, diferente do exagero das promessas, tomar um banho de mar no local – impróprio há mais de um século – não será possível tão cedo.
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Para começar a entender este cenário, há um caminho prático e moderno: o site do IMA (Instituto do Meio Ambiente), que apresenta uma página com o histórico dos pontos coletados ano a ano.
No caso da Beira-Mar Norte, estão disponíveis dados desde 1996, mas duas décadas não são o suficiente para identificar o início da poluição. É preciso voltar ainda mais no tempo para identificar o primeiro registro de degradação da qualidade da água.
O destino natural foi procurar a biblioteca do IMA, que armazena todos os dados de balneabilidade das coletas desde a década de 70. Entretanto, o espaço que abrigava os arquivos na antiga sede do órgão, na rua Felipe Schmidt, foi fechado por problemas estruturais.
Alguns documentos foram mantidos e outros descartados. Sem o ao arquivo da biblioteca, o primeiro registro de poluição da Beira-Mar virou um mistério. Não se sabe com precisão o momento que mergulhar naquelas águas ou a oferecer riscos à saúde.
Os arquivos de balneabilidade mais antigos foram encontrados em uma sala no norte da Ilha. Os fragmentos da história da Beira-Mar estão em um espaço emprestado, junto a inúmeros tipos de objetos no Parque Estadual do Rio Vermelho – que é a sala disponibilizada pelo Governo do Estado para armazená-los.
Os arquivos saíram da biblioteca do IMA em junho de 2020, quando a entidade perdeu a sede. No local, foram encontrados registros até 1980. Os documentos apresentaram registros de “água imprópria” de forma reiterada. Há relatórios com a indicação de índice de balneabilidade “sistematicamente impróprio”.
É necessário recorrer aos livros de história para entender que talvez a última vez que a água da Beira-Mar foi limpa, a ponto de permitir um mergulho, tenha sido muito antes de existir uma cidade naquela região.
As primeiras casas construídas por ali ficavam de costas para o mar, que era o destino de todos os dejetos gerados. Quem levava o esgoto até as águas eram os escravos apelidados de Tigres (a reação química dos efluentes formavam manchas em formato de listas brancas, por isso o apelido pejorativo). Faz parte da história de Florianópolis despejar esgoto na Beira-Mar.
Cultura de jogar esgoto na Beira-Mar permanece mesmo com saneamento 4oq5
Florianópolis tem rede coletora de esgoto para 60% da população. Embora de forma tardia, a região da Beira-Mar, uma das mais nobres da Capital, foi uma das primeiras a ser contemplada com o serviço de saneamento. Entretanto, o problema é histórico e cultural. São décadas de despejo irregular. Há moradias que despejam esgoto in natura.
“Florianópolis nasceu com a cultura de jogar esgoto na Beira-Mar. O centro não foi pensado para ter praia”, explica o secretário adjunto da SMMA (Secretaria Municipal de Meio Ambiente), Lucas Arruda.
A fala sustenta a versão de que o desinteresse e desconhecimento ainda predominam. Nos arredores da Beira-Mar, há um longo e difícil trabalho a ser feito para consertar o problema.
Arruda destaca o projeto Se Liga Na Rede que funciona nas regiões que têm saneamento com técnicos que orientam a população porta a porta para se conectarem à rede coletora. Ele diz que é um trabalho para “reverter e mudar a tradição de jogar esgoto no mar”.
Relato do Repórter 34b5k
Lorenzo Dornelles
“Decidi traçar uma linha do tempo e contabilizar o número de vezes em que a Beira-Mar esteve sistematicamente imprópria durante sua existência.
Ao longo da apuração ficou evidente de que o hábito de poluir essa área é muito mais antigo do que o início das análises de balneabilidade, mas foi decepcionante não ter condições de fazer um levantamento completo ao saber que, por conta de problemas estruturais, o armazenamento desses dados tenham sido tão prejudicados.
Ouvi que antigamente esses arquivos eram muito bem organizados em uma biblioteca própria, mas hoje me deparei com caixas e estantes em um local emprestado e sem um responsável direto. Tive que contar com a boa vontade de profissionais de outras áreas para conseguir localizá-los. É difícil pensar em evolução se o ado for ignorado”.
Veja o que diz a Secretária de istração sobre a troca de sede do IMA 5q6d30
O IMA anunciou sua mudança de endereço no dia 15 de junho de 2020. No comunicado oficial, o Instituto explicou a necessidade da troca de sede por conta de “limitações estruturais” no prédio, que não atendiam às normas de ibilidade necessárias. No processo, a SEA (Secretaria de Estado de istração) informou “não haver imóvel do Estado que pudesse atender ao pleito”.
Dessa forma, foi aberto um processo de locação para a nova sede do IMA. A mudança se deu para um local mais econômico: “o aluguel mensal do local anterior era de R$ 33,29 por m².
No novo imóvel, a locação por mês é de R$ 27,32 por m²”, disse a nota emitida na época. Segundo informações do Instituto, a biblioteca que armazenava todos os arquivos de balneabilidade no antigo prédio precisou ser desmontada, e a nova sede não conta com espaço suficiente. Os dados foram levados a uma sala no Parque do Rio Vermelho
Décadas de poluição 465d3m
Até o início do século XX, a população de Florianópolis (ou antigo Desterro) não contava com qualquer infraestrutura sanitária adequada. Os dejetos eram lançados preferencialmente nos mares, para evitar o mau cheiro. Era utilizado o serviço de transporte de resíduos feitos por escravos, denominados “tigres”. A Beira-Mar era um dos pontos de destinação de esgoto.
Década de 60: é implementada a Avenida Beira-Mar, a partir de um aterro – que afastou o mar e abriu caminho para os veículos.
A partir da década de 70 a região atraiu investimentos da construção civil e ou por um ‘boom imobiliário’. Também na década de 70 Florianópolis ou a aprimorar as estações de tratamento de esgoto com novas concepções – como o tratamento coletivo.
Em 2017, foi aprovado o edital e anunciado pela Casan e Prefeitura de Florianópolis um investimento de R$ 18 milhões na URA (Unidade de Restauração Ambiental). A Beira-Mar ou a receber uma ‘limpeza’ e ou a evitar o lançamento de litros de esgoto irregular.
No dia 26 de março de 2019, pela primeira vez um ponto da Avenida Beira-Mar recebeu a placa de própria para banho pelo IMA.