No ano em que a Lei 10.639 completa 20 anos, a rede municipal de Florianópolis compartilhou com escolas e Neims (Núcleos de Educação Infantil Municipais) princípios que direcionam a educação antirracista e a forma como o tema pode ser abordado em sala de aula.
Com seminário, encontros e tarefas que fazem parte do cotidiano das crianças e estudantes, em todos os componentes curriculares, não faltam exemplos de práticas que extrapolaram as paredes da escola. Confira:
Sankofa e Ubuntu 6i2i4w

Na Escola Básica Municipal (EBM) Beatriz de Souza Brito, a educação das relações étnico-raciais já é uma realidade. A ideia começou em 2019, em conversa entre as profissionais Camila Porciuncula e Nailze Pereira de Azevedo Pazin, diretora e professora, respectivamente.
O objetivo era oferecer experiências vivenciadas durante todo o ano, levando em consideração apontamentos dos estudantes e uma base que fosse capaz de instigar o desenvolvimento dos educadores.
A possibilidade de formação de um grupo de estudos foi capaz de despertar a atenção dos jovens e profissionais, dando vida ao grupo Sankofa e Grupo Estudantes Sankofa em Ação.
“‘Sankofa’ é um símbolo adinkra dos povos Akan, da África Ocidental, região que hoje abrange parte de Gana e da Costa do Marfim. Pode ser representado como um desenho similar ao coração de um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro”, argumenta Nailze, explicando que a filosofia africana expressa a volta ao ado para ressignificar e transformar o presente e o futuro.
Para lidar com as situações que surgem na unidade e promover a equidade, um dos primeiros os foi oferecer um espaço de debate entre os profissionais.
“O nosso objetivo principal é esse: aliar teoria e prática, sempre rompendo as barreiras do preconceito, porque fomos criados dessa maneira, é uma questão que está na sociedade. Não pode continuar naturalizando certas situações e precisamos do estudo para rever algumas situações”, diz a diretora, que reitera que ninguém nasce racista.
E os resultados de um ambiente plural já fazem parte do dia a dia na unidade. “Percebemos bastante mudança na liberdade dos cabelos, na questão do tratamento com os estudantes. Eles se autodeclaram negros, porque o censo é baseado na autodeclaração, e nós tínhamos estudantes negros que não se consideravam negros. Esse foi um trabalho realizado dentro da escola”, finaliza a diretora, mencionando a importância de abordar a história africana por outros pontos de vista.
O grupo de estudos faz parte do Ubuntu (eu sou porque nós somos). “Sinaliza que as existências humanas estão interconectadas, ou seja, a condição humana é uma existência coletiva. O preconceito racial cria um estigma, marca, relação perversa e negativa quanto a tudo o que diz respeito ao não branco, às suas formas de ser e de significar o mundo. Se desejamos uma sociedade com justiça social, é imperativo transformarmos nossas escolas em um território de equidade, acolhimento, respeito e afetividades”, finaliza Nailze, doutora em História.
Aprendendo com a leitura e a música 565x6h
No Núcleo de Educação Infantil Municipal (Neim) Zilda Arns Neumann, o princípio é apresentado por meio da literatura e da música, explorando os ambientes de convívio e a forma como as crianças brincam e interagem.
“Se trata da maneira como nos relacionamos, como pensamos os espaços e materialidades destinados às crianças, para que ninguém se sinta excluído ou não se sinta representado. Trata-se de como reverberar em ações e encaminhamentos diante de situações de exclusão devido ao racismo”, pontua a supervisora Regiane Aparecida de Oliveira Faria.
Com interações que contemplam todas as crianças, desde os mais novos, é no cotidiano que eles aprendem sobre o respeito e as relações étnico-raciais.
“Ao pensar em um canto de cabeleireiro, temos que trazer elementos que contemplem todos os tipos de cabelos (pentes, cremes, adereços), trazer imagens com vários tipos de penteados. Pensar na literatura o protagonismo negro e indígena, tanto de personagens como de escritores; pensar artistas musicais, plásticos, cinema, teatro, cientistas, trazendo representatividade diversa para enriquecer as relações e os repertórios das crianças”, finaliza a supervisora, que está à frente da unidade junto com a diretora Lucila Malagoli.

Educação e inspiração 3v132o
No caso de Marrara Gomes Chave, que atua na rede municipal há dez anos, a educação sempre foi o ponto de partida para mudar a realidade. Moradora do Morro do Horácio na infância e adolescência, teve sua trajetória escolar interrompida pelo casamento e os filhos, que surgiram quando ela tinha 16 anos. Entretanto, anos depois, o desejo de estudar voltou, buscando a formação na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e uma graduação em Pedagogia — foi a primeira da família a conquistar um diploma do Ensino Superior.
“Sentia que precisávamos mudar a nossa condição social, e eu sempre fui apaixonada pela escola, sempre fui encantada pela escola, sempre brinquei de escolinha. Sempre tive o sonho de ser professora, mas para minha realidade era impossível”, lembra a assessora.
Entretanto, o mesmo amor que sentia quando criança retornou após voltar à sala de aula, compreendendo o papel transformador do ensino.
“Lembro de tudo que a educação me deu, tudo que consegui a partir da educação. É isso que sempre tento mostrar. Quando chego para os meus estudantes, tenho que mostrar como a educação é capaz de mudar a vida das pessoas, e eu sou a prova viva de que a educação é a base, ela te empurra, te leva, te carrega”, enaltece a professora, que agora acompanha a formação dos irmãos e sobrinhos.
Além da sala de aula 4woh
Mais que as oportunidades em unidades escolares, Florianópolis também foi palco do “XVII Seminário da Diversidade Étnico-Racial — saberes e conhecimentos diversos: práticas pedagógicas da rede municipal de ensino”.
Com a participação de gestores, diretores, professores, estudantes e pais, o encontro foi um momento de celebração do que tem acontecido em sala de aula.
Com partilhas e trocas de experiências, o evento foi marcado por palestras e apresentações culturais de diferentes unidades educativas, que celebram a educação antirracista como princípio educativo e contribuem para a ampliação de repertório.
“Esse é o grande momento de culminância de todo o trabalho desenvolvido. Quando se discute a educação antirracista, não estamos falando de projeto, nós estamos falando de princípio educativo. Discutir as relações raciais no âmbito das unidades escolares é um trabalho que começa em fevereiro e pera todo o ano. É o momento em que podemos socializar, festejar tudo aquilo que foi desenvolvido nas unidades de Educação Infantil, Ensino Fundamental e a Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJA)”, explica a gerente da EJA e conveniadas e coordenadora da comissão geral do seminário, Sônia Carvalho.
Para a professora de anos iniciais e assessora pedagógica Marrara Gomes Chave, que contribuiu com o desenvolvimento do seminário, o diferencial está naquilo que será compartilhado na escola.
“Quando o professor traz essas possibilidades, personalidades negras para sala, o estudante consegue se ver, ver que é possível exercer outro papel social além daquele que é fadado para ele, que existem outras possibilidades, que ele pode ser muito mais. Estamos valorizando aquele estudante. Quando deixamos de fazer isso, o educador e a escola estão contribuindo para o que é pregado pela sociedade”, opina a profissional.
Pensando em ampliar o debater para espaços de convivência social, Florianópolis conta com um novo local, uma biblioteca com literatura afro-brasileira e antirracista, a primeira da cidade.
Com o nome de João Ferreira de Souza, o espaço é no piso térreo do Centro Cultural Escrava Anastácia (CCEA). A Câmara Municipal de Florianópolis também aprovou o Projeto de Lei 18982/2023, instituindo o programa municipal Floripa Antirracista, com estratégias de combate ao racismo.