Consciência Negra: os desafios do ensino antirracista em SC 4z3j56

- +
Diretora do CED/UFSC, Joana os defende que não há como entender a sociedade brasileira sem pensar na população negra

Em 20 de novembro comemora-se o Dia da Consciência Negra, mas o tema  ainda está longe de ser amplamente compreendido no Brasil, especialmente fora das esferas de luta dos movimentos negros.

Ao longo dos anos essa população, que é maioria na sociedade brasileira, segue produzindo, criando e refletindo sobre os espaços que ocupam, inclusive nas escolas.

O ensino da história e cultura afro-brasileira e africana é obrigatório nas escolas brasileiras desde 2003 – Foto: Nappy/Divulgação/NDO ensino da história e cultura afro-brasileira e africana é obrigatório nas escolas brasileiras desde 2003 – Foto: Nappy/Divulgação/ND

O ensino sobre a história e cultura afro-brasileira e africana é obrigatório nas escolas do Brasil desde 2003, sejam elas públicas ou particulares, mas o tema da Consciência Negra continua precisando ser ampliado nas instituições de ensino.

Em entrevista ao portal ND+, a professora e diretora do CED (Centro de Ciências da Educação) da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Joana os fala sobre o tratamento do tema nas escolas, a  história da data que homenageia Zumbi dos Palmares, as produções do povo negro e o que significa ter consciência negra.

Segundo ela, o ensino antirracista tem benefícios tanto para as crianças negras, ao potencializar sua permanência nesses espaços, quanto para as brancas. “Ao não saberem da história de todos os que pertencem a esse território, [os alunos] acabam acreditando numa história pela metade”, defende a professora.

Os benefícios da educação antirracista atingem todos os brasileiros – Foto: Nappy/Divulgação/NDOs benefícios da educação antirracista atingem todos os brasileiros – Foto: Nappy/Divulgação/ND

Confira  a entrevista: 6g154j

ND+: O que significa ter Consciência Negra?

Joana os: Essa é uma questão importante porque, na maioria das vezes, as pessoas pensam que a Consciência Negra é algo que deve ser responsabilidade exclusiva dos negros.

Eu digo que ter Consciência Negra significa compreender, valorizar e assegurar que o legado de 56% da população brasileira – que é negra – no campo das artes, das ciências, da tecnologia, da economia, do trabalho, da saúde e religiosidade, seja sempre valorizado e identificado como um patrimônio, não somente histórico e cultural, mas como um patrimônio cotidiano, permanente na vida da nação brasileira.

Ter Consciência Negra significa conhecer a produção artística, cultural, econômica e no desenvolvimento comunitário da população negra, principalmente aquela periferizada e que têm sido desqualificado e desconsiderada nos projetos de desenvolvimento que o Brasil tem implantado na sua história.

Pensar na Consciência Negra significa ainda trazer da dimensão do apagamento e da invisibilidade os intelectuais negros, pessoas comuns do cotidiano, negros das comunidades e que têm uma atuação importante. Trazer também as grandes organizações negras e o movimento negro, que têm sido responsáveis por manter viva a história e cultura afro-brasileira no nosso dia a dia.

Nesse período de novembro as grandes mídias e as escolas lembram da Consciência Negra, como se a gente tivesse negro somente no mês de novembro. Nós somos 56% da população brasileira e estamos fazendo e refazendo o Brasil.

Neste momento, por exemplo, de tantos problemas econômicos que vivemos, as pessoas vão buscando alternativas de sobrevivência. Essas alternativas de sobrevivência são, para mim, um legado da luta permanente daqueles que foram escravizados e que conseguiram manter tantos de nós e de nossa história, apesar das condições de vida que tiveram.

Joana os foi homenageada em 2019 com a medalha Antonieta de Barros – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/NDJoana os foi homenageada em 2019 com a medalha Antonieta de Barros – Foto: Arquivo pessoal/Divulgação/ND

ND+: Você pode falar sobre o histórico da data?

Joana os: O dia 20 de novembro relembra a morte de Zumbi dos Palmares, último líder do quilombo dos Palmares, assassinado em 1695.

O Dia da Consciência Negra se torna uma referência para a negritude brasileira a partir de uma iniciativa realizada pelo grupo Palmares, no Rio Grande do Sul, que organizou atividades e ou a trabalhar com a ideia de 20 de novembro em contraposição ao 13 de maio [ da Lei Áurea], que era muito forte nos anos 70.

Em 1971 aconteceu o primeiro ato, que ou a ser uma referência, em homenagem a Zumbi dos Palmares. Um ato de manifesto público contra o racismo, contra a discriminação racial e por condições de vida digna para a população negra.

O poeta Oliveira Silveira foi uma das lideranças mais importantes para criar a data e até hoje a gente cumpre com esse rito de manifesto público.

Em 2011 o governo brasileiro oficializa, a partir da lei 12.519, o Dia Nacional da Consciência Negra. Em vários municípios brasileiros é feriado nessa data, pelo reconhecimento da importância dessa luta.

Somos defensores de que a valorização [da Consciência Negra] também se dá por meio dos feriados mas, como vivemos numa sociedade racista, o que orienta os feriados também são hegemônicos brancos.

ND+: Como as escolas trabalham a consciência negra em Santa Catarina?

Joana os: A gente percebe que há iniciativas de trabalhar a questão da Consciência Negra, ainda que muito menor do que gostaríamos.

É importante colocar que estamos vivendo um período de muitas ameaças a professores e professoras, inclusive quando estes pautam a questão racial.

Nós voltamos a viver um período forte de negacionismo no Brasil, também em relação ao racismo, embora ele esteja acontecendo o tempo todo e sendo compartilhado nas redes sociais.

As crianças brancas, ao não saberem da história de todos os que pertencem ao território, acabam acreditando numa história pela metade, numa pseudo superioridade branca e num modo pejorativo de olhar para as outras crianças negras e indígenas nas escolas.

“A reflexão sobre o negro na sociedade brasileira é uma reflexão sobre a sociedade brasileira”.

Quero dizer que a gente precisa avançar muito mais. O Estado de Santa Catarina tem muitas manifestações racistas. Nós vamos ter que enfrentar e, lamentavelmente, isso tem causado uma série de prejuízos aos docentes, professores e professoras, que assumem a luta antirracista.

ND+: Como professores podem incentivar a reflexão sobre o negro na sociedade brasileira?

Joana os: A reflexão sobre o negro na sociedade brasileira é uma reflexão sobre a sociedade brasileira. Pensar a sociedade brasileira sem discutir o papel, a composição demográfica, o modo de vida, os saberes e o desenvolvimento econômico na perspectiva de negros é ignorar o que é essa sociedade.

Desse modo, penso que professores e professoras podem construir didaticamente e ludicamente atividades que permitam olhar para a história, para o desenvolvimento econômico nas comunidades, para os fazeres das mulheres e as brincadeiras das crianças.

Olhar sobretudo para uma perspectiva de construir um outro imaginário sobre a população negra. Tirar esse modo pejorativo, desqualificador e racista – porque não tenho outro modo de me referir a quem trata de um outro jeito negros na sociedade brasileira.

A escola é um lugar super importante para enfrentar o racismo no cotidiano. Diria ainda que a escola pública é o lugar onde a diversidade e a pluralidade estão mais presentes.

Isso não significa que as instituições privadas não tenham responsabilidade sobre esse aspecto relativo aos negros da sociedade brasileira. A escola como instituição precisa tratar disso porque, do contrário, ela estará negando a própria história e ao negar traz prejuízos para todos.

Nós temos completo entendimento de que a gente [negros], além de se apropriar sobre a nossa própria história – que foi negada e que tivemos que aprender tardiamente – dominamos completamente a história dos brancos. Isso nos coloca numa condição intelectual de enfrentar qualquer debate público ou qualquer situação que tenha a questão racial como foco.

ND+: Como levar este tema para as salas de aula pode influenciar na educação das crianças, especialmente das crianças negras?

Joana os: Eu penso que a sala de aula é um espaço de muita responsabilidade e muito importante. A escola, principalmente a pública, é um lugar da diversidade.

Se a escola, as professoras e os professores acolhem o antirracismo como um princípio pedagógico, isso potencializa a permanência das crianças negras. Além de potencializar o aprendizado dessas crianças, aproxima as relações entre família e escola.

Também faz com que crianças brancas aprendam sobre si mesmas. Sem dúvida alguma, as crianças negras são beneficiadas, mas as crianças brancas também são – pela desmistificação da sua pseudo superioridade em relação às crianças negras.

ND+: Como a Lei nº 9.394 (alterada em 2003 para a Lei 10.639) impactou o ensino do tema?

Joana os: A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) foi alterada em 2003 pela Lei 10.639 e exige o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas e tem impactado de várias formas.

Nós temos, em 2003, uma alteração fundamental na lei que considerava, até então, que o currículo era algo universal e que poderia ser tratado sem trazer o protagonismo e a história de 56% da população brasileira.

Então, o primeiro impacto é que a escola a a desmistificar quem é o povo brasileiro e a gente sai daquela ideia de uma democracia racial, a qual afirma que aqui todos vivem harmonicamente e que não há racismo.

A escola tem essa chance de trazer uma outra versão para as crianças, a partir da história, da geografia, da arte, da linguagem e da matemática. Sem dúvida alguma isso impacta porque faz também com que professores e professoras em a se dedicar para estudar sobre esse tema.

Assim, nós temos um crescimento nas pesquisas que abordam diferentes campos de conhecimento e vão contribuir para que o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas seja de fato implantado.