Nos olhos, um misto de enigma, audácia e determinação, que lançavam um olhar ardente sobre o mundo que mal conseguia acompanhar tamanha sagacidade. Casou tarde — para os padrões da época —, falava abertamente sobre temas considerados tabus, como sexo, menstruação e assuntos que, atualmente, fazem parte das pautas de empoderamento feminino. A florianopolitana Alice Guilhon Gonzaga Petrelli conseguia se impor com moralidade, segundo palavras dela mesma.

“Desde os 18 anos trabalhei com muito prazer e vontade. Não pelo dinheiro. Sempre por um ideal. Nunca fui discriminada por ser mulher, mesmo dirigindo dez homens. Não houve atritos. Consegui me impor com muita moralidade”, disse durante sua última entrevista, em 1981, para a revista “A Verdade”.
Dona Alice, como era carinhosamente chamada, nasceu na Ilha da Magia, no dia 17 de junho de 1899. Era filha do desembargador Sálvio de Sá Gonzaga e de Dona Maria da Glória Guilhon Gonzaga. Viveu em uma família tradicional de bacharéis de Pernambuco e do Maranhão, os Gonzagas.
Se casou aos 34 anos com o italiano Leonardo Petrelli, com quem teve um único filho, fruto de seu amor incondicional pelo marido, Mário Petrelli — com quem, aliás, se dava muito bem. Mais tarde, Alice e Leonardo se tornaram avós de cinco netos, e bisavós de 10 bisnetos.

Na área profissional, com apenas 18 anos já era professora em Lages, na Serra de Santa Catarina. Mas foi em 1928, aos 29 anos, que Alice fez história no Estado. Foi nomeada escriturária da então Secretaria da Fazenda, Viação, Obras Públicas e Agricultura, tornando-se a primeira funcionária pública do Governo do Estado de Santa Catarina.
“Quando triunfou a Revolução de 30, todas as repartições ficaram vazias. Fiquei na minha, sozinha, sem ao menos um porteiro, tomando conta de tudo. Esperando para ar todas as informações ao novo secretário que assumiria o cargo na Secretaria da Fazenda. Se tenho alguma coisa de útil para lembrar nesta vida, foi a ajuda que pude prestar naquela época, evitando perseguições e a prisão de muitas pessoas honestas e inocentes”, relembrou Alice durante a entrevista para a revista.
Muitos familiares e amigos a viam como uma verdadeira líder, daquelas que não pestanejavam ao tomar a frente das coisas, enfrentando quaisquer adversidades que apareciam no caminho.
É com essa vontade de viver que Luciana Petrelli relembra da avó que, para ela, era uma mulher distinta para a época.

“As pessoas avam na casa dela para pedir opinião. Vários políticos. Jorge Bornhausen, governador na época, ela ligava para ele quando tinha que fazer acerto ou quando precisasse de alguma coisa. Ela foi muito presente na vida pública da cidade”, conta com orgulho.
Na missa de corpo presente de Dona Alice, realizada em 8 de outubro de 1990, Dom Murilo Krieger relembrou: “ela foi uma cristã política quando a política era vista com desconfiança. Quando poucas mulheres interessavam-se pela participação política, Dona Alice lá estava, interessada, participando e incentivando outros a participar”.
Compromisso com o próximo 4z2h2i
Uma alma que não se deleitou em cultivar os frutos da vaidade, apesar de sempre se cuidar muito, principalmente quando se tratava de saúde. Alice buscava estar em um constante exercício do espírito cristão, sem ostentação, mas como uma resposta natural para um chamado interior.

Manifestava o amor de uma maneira nobre, não muito no toque de afeto, mas na forma mais simples e genuína: ela se doava ao próximo. O serviço era a essência de sua existência, uma vocação que ela abraçava com devoção sincera. Ela não era apenas uma espectadora na sinfonia da vida, mas uma participante ativa.
Na esquina da Esteves Júnior, nº 179, erguida em 1923 e herdada na encruzilhada dos anos 1950, Dona Alice tratou de trazer um propósito de alcance social e comunitário para o local. O casarão ancestral, um relicário das memórias familiares, se transformou em algo mais: um farol cultural que emitia sua luz em todas as direções.
Nos idos de 1958, as paredes testemunharam a acolhida temporária da Faculdade de Filosofia, um breve capítulo antes de sua migração para o campus majestoso da Universidade Federal de Santa Catarina, na Trindade.
Mas a trama se aprofundou em 1959, quando Dona Alice decidiu destinar o recanto para abrigar a “Casa da Estudante da Juventude Católica”, um refúgio para as sonhadoras estudantes do interior que alçavam os degraus da UFSC e que não tinham recursos financeiros para custear os estudos.

“Para as coisas melhorarem para as mulheres, elas têm que ter ao menos um diploma. O futuro é muito incerto…”, disse Alice em sua última entrevista.
Oficialmente desvelada em 1962, a Casa, um santuário de esperança e solidariedade, adquiriu em 1968 o título solene de “Casa da Estudante Universitária” — ou em sua forma mais singela, a aclamada “CEU”. Pelos corredores desse reduto de sonhos, centenas de jovens deixaram suas pegadas, entre elas a ex-prefeita de Florianópolis Ângela Heinzen Amin. Em 1972, ela pernoitou brevemente, envolta nas ansiedades de um vestibular de Matemática na UFSC, enquanto duas das irmãs da prefeita, Leonida Heinzen de Castro e Adélia Terezinha Massaro, tomaram a CEU como morada entre os anos de 1969 e 1972.
E assim a CEU floresceu no recanto da Esteves Júnior, até que o curso do tempo a levou para novas margens em 1994. Foi quando surgiu o Centro Comunitário Estudantil Alice Petrelli, um novo ponto de encontro educacional, próximo ao Campus da Trindade.
“Ela teve essa participação na vida da estudante catarinense (…). Foi uma avó muito bacana para mim, tenho uma influência muito grande dela nessa questão de postura de mulher, que acreditava que você tinha a natureza inteira. Sempre me motivou muito a estudar, trabalhar, fazer coisas que eu gostasse”, revela a neta Luciana.
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Desde 1999, servidores cujas ações transcendem o ordinário, ascendendo a alturas extraordinárias de desempenho e devoção ao interesse público, recebem uma medalha que carrega o nome da primeira servidora pública de Santa Catarina.
A Medalha de Mérito Funcional Alice Guilhon Gonzaga Petrelli carrega consigo o legado da pioneira, a primeira dama entre os servidores públicos catarinenses.

Assim, o espírito de Alice, a pioneira entre pioneiros, vive por meio desta medalha, como uma corrente inquebrantável que une o ado ao presente. E enquanto essa tradição persistir, a lembrança de Alice e seu legado resplandecerão como um tributo à perseverança e à dedicação que permeiam o coração daqueles que moldam e servem Santa Catarina.
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Agradecimentos especiais 5z4s5h
Agradecimento à Luciana Petrelli, primeira neta de Dona Alice, que compartilhou suas memórias mais marcantes da avó. Também ao jornalista Mário Xavier, que dividiu as falas de Alice para a reportagem “A Verdade”, além de imagens e dados coletados com a família para o centenário de Alice, publicado no jornal “O Estado”, em 1999.
Floripa 350 6j3f1m
O projeto Floripa 350 é uma iniciativa do Grupo ND em comemoração ao aniversário de 350 anos de Florianópolis. Ao longo de dez meses, reportagens especiais sobre a cultura, o desenvolvimento e personalidades da cidade serão publicadas e exibidas no jornal ND, no portal ND+ e na NDTV RecordTV.
No mês de agosto, o projeto irá contar histórias de ‘Mulheres da Ilha’. Personagens com diferentes perfis que fazem a diferença na Ilha da Magia.