Florianópolis tem quase 57 mil famílias em algum nível de pobreza e convívio diário com a fome 3a6334

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A Capital mais rica do país, segundo a FGV, tem 15.331 lares beneficiários do Bolsa Família, mantendo custos com moradia, transporte e alimentação de forma precária, com média de R$ 668,09 por mês

O Sul tem fome. Não é como no Nordeste, ou Norte do Brasil, mas em Florianópolis, a Capital mais rica do país, de acordo com a FGV, ela também desafia a rotina de mães, trabalhadores, encurrala os desempregados, limita jovens, crianças e é inimiga da dignidade de milhares de famílias.

A fome também dificulta a vida de quem mora na Capital mais rica do BrasilA geladeira da casa de Cláudia dificilmente está cheia – Foto: Leo Munhoz/ND

Segundo dados da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), divulgados neste ano, em torno de 33 milhões de pessoas estão no grau de insegurança alimentar e nutricional grave no Brasil. Em Santa Catarina, 338 mil.

O dado não é específico para falar, por exemplo, sobre as cidades. Mas, conforme o Ministério do Desenvolvimento Social, em outubro deste ano, 56.943 famílias de Florianópolis têm registro no CadÚnico. Ou seja, dependem da ajuda do governo para se manter.

A Capital enfrenta a fome com um Restaurante Popular, que oferece 2.000 refeições por dia. Além disso, pelo menos 11 cozinhas comunitárias amenizam o drama na cidade. Mesmo assim, o alimento não chega a todas as mesas.

O Governo do Estado, conforme a Secretaria de Estado da Assistência Social, Mulher e Família, presta apoio técnico e assessoria aos municípios para que executem o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) que beneficia 16 cidades, entre elas, a Capital.

Além de incentivar a economia local, o programa contribui na segurança alimentar da população atendida pela rede socioassistencial, como abrigos, restaurantes populares e Cras (Centro de Referência de Assistência Social).

A compra do PAA contempla produtos como legumes, verduras, panificações, polpa de frutas, dependendo da necessidade do município e da oferta dos alimentos dos agricultores em cada época. No último edital do PAA, que será executado até novembro, Florianópolis recebeu cerca de R$ 167 mil.

Em outubro de 2023, Florianópolis tem 56.943 famílias no CadÚnico r2q2c

  • 14.408 mil famílias de baixa renda.
  • 19.099 famílias em situação de pobreza.
  • 23.436 famílias com renda acima de meio salário mínimo.
  • Ao todo, são 15.523 famílias beneficiárias do Bolsa Família, com renda média de R$ 668,09.

Cláudia de Jesus dos Santos, 40 anos, está desempregada. Natural de Serrinha, no sertão da Bahia, vive há 16 anos em Florianópolis: “ei fome, sim, não vou mentir. Agora não é tanto, mas antes, no interior, ei muita fome. É horrível, ninguém merece. A pior coisa do mundo é estender a mão e não ter quem te ajude.”

Daniel Antunes Carvalho, 49, é estudante de música e Inglês, no IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina). Natural do Rio de Janeiro, percorreu várias cidades até chegar a Florianópolis, onde vive em situação de rua: “ei fome imensuráveis vezes. É triste. Dói. E você tem que manter o caráter, não prejudicar ninguém por causa disso. A vida do cidadão brasileiro é muito difícil.”

A manezinha Adriana de Francisco, 53, foi operadora de VT, contadora, vendedora… “Comi do lixo! Quando não tinha o Restaurante Popular, comi do lixo. Na época da pandemia, não tínhamos o que comer, mas nunca desisti. Importante é a gente não desistir.”

Michel Chagas, 31, está desempregado e vive de bico. Renda mensal: R$ 200 a R$ 900. Natural de Horizontina (RS), mora em Florianópolis há dois anos. Aluguel: R$ 800,00. A conta não fecha.

“Para mim, o Restaurante Popular é importante, porque quando estou perto, é onde tenho a refeição e consigo pagar sem comprometer outras coisas. Consigo me alimentar e não ar fome.”

O temor de oferecer a fome às crianças 16e3l

Claudia comanda uma das 15.331 famílias beneficiárias do Bolsa Família em Florianópolis, graças à filha Vitória, de dois anos. Ela deixou de ser garçonete quando a pequena nasceu. Enquanto a menina depende dela, não se sente tranquila para buscar emprego.

Todo mês, por enquanto, só os R$ 750 do benefício federal. Quando aperta, vai do Ratones, no Norte da Ilha, até o Centro, de ônibus, para o Restaurante Popular.

Cláudia não quer legar a fome a pequena VitóriaO maior medo de Cláudia é que a filha sinta fome, como ela sentiu na Bahia – Foto: Leo Munhoz/ND

“Até agora, nada para reclamar e nem devemos. Vim com ela [Vitória] e ia voltar sem almoçar, estava sem um real”, conta. “Quando tenho, deixo para os outros, mas nessa semana a gente tá apertado, não tem em casa.” Segundo Claudia, o dinheiro do Bolsa Família dura quase o mês todo, mas há momentos de aperto.

O pai de Vitória, Jairo, é autônomo. Os três moram nos fundos da casa da avó dele: quarto, cozinha e banheiro. “Não tenho como pagar aluguel, se tivesse condições, teria saído de onde moro, mas não posso fazer nada, então, vamos levando”, diz Claudia. Jairo trabalha colocando lajota para uma empresa, mas nem sempre tem trabalho e ganha R$ 100,00 por serviço.

Fome e pobreza estão intimamente ligadasVocê está vendo praticamente a casa inteira de Cláudia, Vitória e Jairo – Foto: Leo Munhoz/ND

Claudia tem saudades da Bahia e dos familiares. “Tem oito anos que não vou lá. Não tenho condição. Estava entrando em depressão, depois que tive ela, melhorei bastante. Minha felicidade é minha filha. É tudo pra mim.”

De galho em galho, em situação de rua 2ld1b

Daniel saiu de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, há mais de dez anos. Foi pedreiro, gráfico, mas quando ficou desempregado, perdeu o vínculo familiar. “Resolvi tentar a vida em outra cidade”.

São Paulo, Rio Grande do Sul, depois Florianópolis. “As portas estão se abrindo, vejo motivo de viver. Sou morador de rua, mas sou acolhido, vivo em casa de apoio, recebo Bolsa Família.”

No inverno, dorme na casa de amigos. Semana na casa de um, semana na casa de outro. Ao longo da vida, perdeu as contas de quantas vezes ficou sem ter o que comer. “Sem alimentação, a gente fica sem rumo, sem chão. O corpo físico precisa de alimentação para manter a gente em pé, para andar, raciocinar, trabalhar e sair dessa situação de rua.”

Daniel se sente feliz pela vitória contra a fome em FlorianópolisDaniel se sente grato pela mudança de perspectiva em Florianópolis – Foto: Leo Munhoz/ND

Frequentador do Restaurante Popular, é grato ao equipamento: “Uma bênção muito grande. Poder me alimentar, encontrar uma comida boa, higienizada, ser tratado com respeito. A nutricionista me trata com todo o carinho possível, de uma irmã mais velha. Tô muito feliz”.

Sem o restaurante, ele acredita que voltaria a enfrentar a fome e o desespero de correr atrás de dinheiro de qualquer maneira.

“Por não ter alimentação na hora certa, aceitamos qualquer trabalho. Vendo que estamos precisando, as pessoas exploram, pagam o mínimo e aceitamos, porque estamos com fome. Quando abriu este restaurante foi um porto seguro. Acordo com fome, chego aqui, me alimento e começo a ter chão para raciocinar e seguir em frente”.

Gratidão, mesmo na dificuldade 3f1x52

Adriana paga um aluguel de R$ 600 no Morro da Cruz, em Florianópolis. Antes, viveu seis anos em situação de rua. “Ainda tem um dinheiro guardado. Voltei a receber Bolsa Família, vou equilibrando e faço os meus bicos”, conta. “Moro sozinha, a despensa está mais ou menos, mas a gente vai se virando e tem o restaurante”, completa.

Quando ficou sem emprego, entrou no CadÚnico. Almoça, toma café e janta no Restaurante Popular sem pagar. “Desde o primeiro dia, eu venho. É um conforto. Antes, vinha só o pessoal da rua, agora, vejo profissionais que trabalham aqui perto e pagavam R$ 20 a marmita, hoje, gastam R$ 6 e a comida é excelente.”

Único Restaurante Popular de Florianópolis tem mais de um ano de operaçãoA festa de um ano do Restaurante Popular teve até música ao vivo – Foto: Leo Munhoz/ND

Na festa de um ano do restaurante, em 17 de julho deste ano, Adriana pediu licença ao músico contratado, pegou o microfone e agradeceu. “Tem pessoas que moram na rua e não agradecem. Não têm o que comer e reclamam. Acho errado. Se tô na rua, com fome e ganho um grão de arroz, pra mim, é maravilhoso. Ninguém tem obrigação de dar nada.”

A meta é conseguir emprego e viver dias melhores. Enquanto não chega lá, é grata pelo pouco que ganha. “Se tu te alimenta de manhã, se tem onde tomar café, tu sai de casa e levanta, mesmo na rua, em condições de procurar um emprego. Agora a pessoa que levanta, tem que matar um leão pra tomar um café, é complicado.”

Desempregado há mais de um ano p644w

Michel divide aluguel com um amigo, no Rio Vermelho, Norte da Ilha. Ele se apresenta como ‘faz tudo’ e cita funções como manutenção de jardim e pintura. Veio para Florianópolis por causa de uma oferta de trabalho. “O emprego não durou. Foi uma proposta muito boa, mas veio pandemia, perda de cliente, a empresa fechou e fiquei desempregado.”

Sem família em Santa Catarina, se mantém com uma renda que quase não cobre o aluguel e busca trabalho. Enquanto isso, se vira como freelancer, mas raramente recebe para alimentação, transporte e pelo serviço.

Ele frequenta o Restaurante Popular desde outubro de 2022 e paga 50% nas refeições. “É onde consigo almoçar, jantar e ir embora para casa sem ter que ir atrás de alimento.”

Para milhares de pessoas, a estrutura pública é sinônimo de dignidade. “Teve dias que a opção era vir pra cá, ou não ter o que comer. O armário em casa está bem vazio. Hoje, recebo ajuda de uma igreja, então, consigo ter alguma coisa, mas é o mínimo para a subsistência”.

Michel quer um emprego para driblar a fome – Foto: Leo Munhoz/NDMichel quer um emprego para driblar a fome – Foto: Leo Munhoz/ND

Michel precisou muitas vezes do amigo com quem divide aluguel para honrar a despesa mensal. “Tenho uma dívida muito grande com ele. É a pessoa que me mantém quando tenho essas dificuldades”.

Filho de uma faxineira aposentada e de um pedreiro, que morreu de Covid, Michel saiu de casa aos 16 anos, após se desentender com a mãe. O contato familiar se restringe às irmãs, que vivem no Rio Grande do Sul. Delas, recebe ajuda financeira, quando possível, além de apoio psicológico e afetivo.

Num dos períodos mais difíceis da vida, se mantém perseverante. “Conheço gente em situação muito pior, que não tem onde morar, fica na rua e tem a isenção no restaurante para, pelo menos, fazer as refeições. O mínimo que a pessoa precisa para ter uma vida digna é alimentação e moradia”.

500 mil refeições em um ano 4a4g2q

Presidente do Comseas (Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Florianópolis) Eduardo Daniel da Rocha, concorda que o Restaurante Popular é um equipamento importante, mas não supre a demanda de toda a cidade. Ele cita, também, que a Capital tem as cozinhas comunitárias na linha de frente contra a fome, mas que o drama social está longe de ser resolvido.

E lembra que Florianópolis tem mais de 15 mil famílias beneficiárias do Bolsa Família e o único equipamento público para reduzir a insegurança alimentar e nutricional na cidade tem capacidade para 500 cafés da manhã, 1.000 almoços e 500 jantas. Em um ano, o local ofereceu 500 mil refeições.

“O Restaurante Popular é muito importante, mas sozinho não dá vazão à demanda por alimento em Florianópolis, porque é central. Estamos recebendo muitos pedidos de um Restaurante Popular, por exemplo, na área continental, na região do Monte Cristo, Coloninha e também no Norte da Ilha”.

O valor máximo do Restaurante Popular é R$ 6, uma exceção na Capital mais cara do país para quem precisa comer fora de casa – Foto: Leo Munhoz/NDO valor máximo do Restaurante Popular é R$ 6, uma exceção na Capital mais cara do país para quem precisa comer fora de casa – Foto: Leo Munhoz/ND

Neste ano, a gestão Topázio Neto sinalizou a intenção de um segundo Restaurante Popular, desta vez, na área continental. Para o Norte da Ilha, entretanto, não há perspectiva.

Conforme Eduardo, a pandemia agravou a pobreza no Brasil. O país saiu do Mapa da Fome em 2014, mas dava indicativos de retorno em 2016 e isso se concretizou na crise sanitária de Covid-19.

Para o estudioso do tema, o sucesso do ado foi possível graças à política de segurança alimentar e nutricional e aos programas de fomento à produção da agricultura familiar, de transferência de renda e de moradia.

“Não tem como falar de segurança alimentar e nutricional se as pessoas não tiverem como morar e comer dignamente, dentro de um espaço limpo, organizado, acolhedor”, salienta.

Segundo Eduardo, o Restaurante Popular está numa região importante, na avenida Mauro Ramos, perto do Morro da Cruz, onde estão cerca de 20 comunidades com alto índice de vulnerabilidade social, mas precisa avançar, por exemplo, na compra de alimentos da agricultura familiar da região. Além disso, conversar com outros equipamentos públicos, como postos de saúde e escolas.

“Precisamos avançar e não só no combate à fome, mas na promoção do o ao alimento saudável em Florianópolis. Temos, no mínimo, 11 cozinhas solidárias, um Restaurante Popular, mas famílias de muitos bairros em Florianópolis não têm a possibilidade de ar o restaurante no Centro”, afirma Eduardo.

“Para 95% do público, a única refeição do dia é aqui” 2g6n4j

A gerente nutricional, Maria Angélica Brandão, do Instituto Aminc (Amor Incondicional), lidera uma equipe com cerca de dez pessoas, entre cozinheiros e auxiliares de cozinha, a maioria desde o início da operação no Restaurante Popular.

A Organização Social gerencia o restaurante desde a inauguração, em julho de 2022, e teve o contrato renovado em junho ado, custando aproximadamente R$ 6 milhões ao ano para o município. Segundo Angélica, o público também é praticamente o mesmo desde o lançamento.

“Conhecemos todo mundo pelo nome. Vimos as mulheres grávidas e agora elas vêm com os bebês. A gente acompanha e cria vínculo. Tem os trabalhadores do Centro, que vêm durante a semana, alunos e professores do Instituto Estadual, gente que trabalha no Centro e, por ser perto, vem aqui almoçar. Um público bem diversificado”, conta.

Para milhares de pessoas, o Restaurante Popular representa a única chance de fazer refeições diárias em Florianopolis – Foto: Leo Munhoz/NDPara milhares de pessoas, o Restaurante Popular representa a única chance de fazer refeições diárias em Florianopolis – Foto: Leo Munhoz/ND

Para Angélica, o sucesso do restaurante tem dois motivos: oferecer três refeições diárias e funcionar de segunda a segunda e aos feriados. “Sempre digo que 95% do público que atendemos, a única refeição deles é aqui. Estão todos os dias conosco e são muito gratos por conseguir se alimentar, mesmo sem renda, sem ter onde morar, ando frio. É um trabalho muito gratificante”, ressalta.

Conforme Angélica, a maioria do público não tem renda, mas nem todos estão em situação de rua. “Tem famílias que, no momento, estão desempregadas, mas têm ajuda social. Não são moradores de rua necessariamente, mas comem exclusivamente aqui. Fim de semana descem mais famílias dos morros com crianças. Durante o dia, estão na escola, mas à noite também pegam a criança e vêm jantar”, relata Angélica.

Kamilla Spier Costa era nutricionista da secretaria de Assistência Social e foi gestora da parceria entre o município e a Organização Social. “O percentual maior [de público] é o pessoal que não paga. Mas vem motoboy, taxista, estudante, pessoas em situação de rua. Antes de o restaurante abrir, já tem uma fila grande”, conta a profissional.

Segundo ela, nos finais de semana o público muda bastante. Muitas famílias aproveitam as datas com gratuidade no ônibus para ‘comer fora’. Pensando nisso, aos sábados, o Restaurante Popular tem feijoada. “É um lazer para quem não tem tanta condição”, contextualiza Kamilla.

Enfrentando a fome diariamente, mães com filhos pequenos, jovens começando a vida, pessoas em situação de rua, ou de baixa renda, trabalhadores ou desempregados buscam dignidade.

Desde 2010, a alimentação é um dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Esse direito, entretanto, não está em todas as mesas. Falta comida para milhares de famílias, até mesmo na Capital, que é apontada como o primeiro lugar em qualidade de vida.