Há poucas décadas, o fluxo de pessoas do campo indo morar nas grandes cidades era o movimento mais comum no país. A busca por melhores condições de trabalho, saúde, educação e cultura eram os maiores atrativos. Contudo, o crescimento do número de habitantes, o inchaço das capitais, o aumento do trânsito, do estresse e da violência, o declínio da saúde e do convívio social têm levado algumas pessoas a repensaram sobre qual o melhor lugar para se viver.
Neste caminho inverso, antigos moradores de Florianópolis decidiram refazer as suas histórias junto à área rural, em especial na serra catarinense.

“Vim pela primeira vez a Urubici há quase 20 anos e nunca vou esquecer o que senti ao conhecer essa natureza deslumbrante de cânions, mata de araucária e cachoeiras. ei horas no topo do Morro da Igreja apenas contemplando a paisagem de camadas infinitas de montanhas rochosas a 1.823 metros de altitude. Minha alma se sentiu em casa, e eu sabia que um dia viveria aqui”, revela a empresária Ana Ester Rossetto, de 40 anos.
Natural de Concórdia, Ana viveu desde os 12 anos em Florianópolis, e há cinco anos e meio seu lar e sua charmosa pousada Il Rifugio estão em Urubici. Quando chegou à serra, Ana demorou um bom tempo até conseguir desacelerar, pois ainda trazia dentro de si os barulhos da vida na cidade.
“Viver no campo em integração com os ritmos da natureza é como um renascimento, um reaprender a viver, a respirar, a se autoperceber e rever seu papel como ser humano”, comenta.
A empresária conta que sempre amou viajar e que por isso decidiu se especializar em gestão da inovação, em Barcelona, na Espanha. “Lá, despertei para a área de ecoinovação e me apaixonei pela possibilidade de que podemos mudar a nossa sociedade industrial e o nosso estilo de vida para habitar o planeta de forma positiva”.

Assim que retornou ao Brasil, ou a se dedicar à consultoria nessa área, mas à medida que o tempo avançava, um sentimento enorme de botar os conceitos em prática crescia nela.
“Senti que o sonho de morar na montanha havia chegado, e aqui no Morro da Igreja, na montanha mais alta habitada do Sul do país, a 1.420 metros de altitude, comecei a construir minha casa e a pousada, colocando em prática conceitos de sustentabilidade, além de iniciar uma grande jornada de autoconhecimento”.
Assim surgiu um “refúgio de montanha”, um lugar onde as pessoas podem descansar e contemplar, reconectarem-se com a natureza e consigo mesmas. Segundo Ana, o silêncio, o ar puro, a amplitude de horizonte, a água limpa de nascente, o cheiro da mata, o som dos pássaros e o vento nas folhas trazem uma sensação de bem-estar imediata assim que se chega ao local.
Ana faz parte de uma associação comunitária que congrega os moradores do Morro da Igreja para a promoção da localidade e de Urubici como um ecossistema único e delicado, que deve ser mantido com atenção. Há outras importantes associações locais, a de agroecologia, por exemplo, que fortalece os produtores de orgânicos e organiza a entrega de cestas semanais de produtos fresquinhos aos moradores da região.
A Associação do Trade Turístico de Urubici também faz um trabalho de cooperação entre donos de restaurantes, pousadas e demais atores da cadeia do turismo.
“Viver na natureza é partilhar. Aqui todos os vizinhos compartilham o que colhem em excesso de suas hortas. Isso é o dia a dia da vida no campo, cada um compartilha o que a terra tão generosamente oferece, e assim se vive em comunidade”.
Ana Ester Rossetto, empresária

Os desafios e a sustentabilidade 1v2l1z
Ana ou por uma série de desafios para projetar as estratégias de sustentabilidade na construção da pousada e assim acolher as pessoas no alto da montanha, região onde o clima é extremo e chega a -10ºC no inverno e, ao mesmo tempo, oferecer a elas a vivência da beleza e do poder da natureza.
A resposta veio de um projeto baseado na ecoinovação e na arquitetura inteligente, realizado em parceria com Alexandre Gobbo Fernandes, especialista na área. As cabanas foram construídas com containers revestidos e incrustados de maneira delicada na geografia do lugar, cobertas por telhados verdes, com abundante iluminação e ventilação natural.
A estrutura conta com fontes energéticas renováveis para aquecimento de ambientes com calefatores a pellet de biomassa e aquecimento solar da água de banho, com a proteção de nascentes e tratamento de efluentes através do biodigestor e da compostagem de todos os resíduos orgânicos.
As cabanas são rodeadas por paisagismo silvestre, com espécies nativas de folhagens, arbustos e árvores locais. Para a empresária, o resultado foi muito gratificante, pois em pouco tempo pequenos animais silvestres, aves e insetos voltaram a habitar o topo do morro.

“O principal produto turístico da serra catarinense é a natureza, é dela e de seus benefícios que todos vêm em busca. Por isso, vejo que a região precisa realmente levar a sério princípios básicos de sustentabilidade e começar a dar respostas em forma de ações. Como vamos garantir a preservação da água pura e da paisagem natural coberta por mata nativa com a crescente demanda de turistas e com novos moradores?”, questiona.
Tratamento ecológico de esgoto, compostagem de lixo orgânico e reciclagem, proteção dos corpos de água e mananciais, ordenação do parcelamento de solo, entre outras, são algumas alternativas propostas por ela.
Sobre os dias de isolamento social, Ana acredita que existe um chamado para desacelerar e olhar para dentro, para as pessoas amadas e para as escolhas de vida, não importa onde estejamos, se no campo ou na cidade. “É tempo de ouvir os ritmos naturais do corpo em integração com a natureza, respirar mais profundo, acalmar a mente, aquietar o coração”, entende.
A respeito do turismo, um dos setores mais impactados pela pandemia, ela acredita que as pessoas se sentirão mais inseguras para ir a pontos turísticos aglomerados, que a crise diminuirá as viagens internacionais e os empreendimentos terão que se adaptar e se inovar para sobreviver. Por outro lado, “o período que as pessoas aram confinadas em apartamentos na cidade está avivando a valorização do contato com a natureza, e isso favorecerá o turismo regional em destinos com muito verde e espaços amplos ao ar livre, como é o caso da serra catarinense”, reflete.

Uma aposta certeira no desconhecido 4685m
Antes de ir morar na serra catarinense, os cariocas Taís Silva Vieira, 41 anos, e Marcelo Lemos, 42, viveram 20 anos em Florianópolis. Ela era bancária e o marido, gestor de obras. Hoje, são empresários, donos do Restaurante Château du Valle, referência gastronômica em Urubici, cidade que escolheram para viver com os dois filhos, Beatriz, de 12 anos, e Felipe, de 9.
Taís conta que durante muitos anos visitavam a serra a eio, mas em 2012 decidiram comprar um terreno em Urubici com os pais, tios e irmãos. A ideia era ter um refúgio para a família. Mas no início de 2015, Taís sentiu que precisava mudar seu estilo de vida.
“Sonhava em viver aquela paz do interior e ter uma vida menos estressante, que me permitisse acompanhar o crescimento dos meus filhos e me dedicar mais à família.”
Taís Silva Vieira, sócia de restaurante
Em fevereiro do mesmo ano, ao voltar de férias do sítio, surgiu a ideia de abrir um restaurante, uma casa de massas e fondue. “No mês seguinte, já tinha negociado com o banco meu desligamento e em abril estava tocando a obra do restaurante. Minha família entrou de cabeça comigo no meu sonho apesar de nenhum de nós ser do ramo da gastronomia. Eu, minha mãe, irmã e tias dividimos todas as funções até o negócio deslanchar”, explica.

No início, Taís saía de Florianópolis às quartas-feiras e voltava apenas na segunda-feira para ver seus filhos e o marido, que ainda tinham atividades na Capital. A partir de agosto de 2015, as portas do restaurante foram abertas, e o marido vinha toda sexta-feira e voltava no domingo.
Somente em janeiro de 2016, as crianças mudaram definitivamente para Urubici, e Marcelo, em junho. “Eu tinha muito receio de como seria a escola no interior e de como as crianças se adaptariam num novo espaço ao deixar uma escola maravilhosa. Como ter certeza de que eles teriam a mesma qualidade de ensino? Mas para minha felicidade, Beatriz e Felipe curtiram demais a nova escola, pois havia atividades como aprender a andar a cavalo, ir à cachoeira e ao açude, enfim, no contato com a natureza eles encontraram liberdade e vivência”, emociona-se.

Aos poucos, a família mudou os hábitos cotidianos típicos da cidade grande, principalmente o consumo, que reduziu. Hoje, para Taís, a vivência maior está na interação com o local, “com os animais, com ver vagalumes, com ver o céu com milhões de estrelas, com fazer fogueira, com o piquenique na beira do rio”, destaca.
Para ela, uma das grandes vantagens de se viver no interior é que todas as pessoas se conhecem, o que propiciou à família estabelecer relações de confiança. “Aqui ainda se anota no caderninho a compra que se faz”, comenta. Como não há shopping em Urubici, quando querem ir ao cinema, pegam o carro e vão até Lages, a uma hora e meia dali.
Segundo ela, é o mesmo tempo que muitas vezes gastavam no engarrafamento em Florianópolis voltando do trabalho. E o mesmo acontece quando querem ir à praia. Eles se programam para descer a serra rumo a Florianópolis para “matar a saudade do mar”.

Boa dose de fé e coragem para largar um emprego estável 3z662b
A empresária revela que para realizar essa grande mudança de estilo de vida foi preciso ter coragem e fé. “Largar um emprego estável com um bom salário e benefícios, e se aventurar a montar o próprio negócio no meio do nada foi visto para muitos como uma loucura”, comenta.
Até porque Taís nunca havia entrado em uma cozinha de um restaurante me não sabia nada desse contexto. “Comecei a ir para o fogão testar receitas e a ler tudo sobre gastronomia, e deixei que minha intuição me conduzisse. Assim, acabei aprendendo muito do negócio”.
Leia também: 23439
Na quarentena, famílias de reinventam resgatando o bom hábito de cozinhar
Projeto envolva-se transforma artesãos em empreendedores muito mais conscientes
Tudo o que oferecem no restaurante é produzido por eles – as massas, os molhos, as geleias e outros alimentos – e que a maioria dos produtos utilizados na preparação dos pratos são da região, tais como hortaliças, frutas, mel e cogumelos, já que a relação com os produtores locais é de muita parceria.
“Um exemplo é nossa carta de vinhos. Temos orgulho em dizer que trabalhamos somente com vinhos de altitude da região Serrana de Santa Catarina. Possuímos várias vinícolas com vinhos premiados e que não perdem em nada para muitos rótulos importados”, destaca.
Para o casal de empresários, valorizar o produto da região e movimentar a economia local é um dos grandes lemas do restaurante. Além disso, na alta temporada, eles costumam empregar 15 pessoas da cidade.
Na quarentena, o casal avalia o quanto foi feliz com a escolha de viver em uma cidade pequena. “Estamos isolados em um local de quatro hectares, onde as crianças brincam o dia inteiro correndo atrás dos cachorros, ao ar livre, pescando, tomando sol”, pontua. Sobre a pandemia, Taís revela que o seu maior desejo é que as pessoas percebam que é preciso saber viver, e não focar somente em ter. “A felicidade vem das coisas mais simples, vem de dentro”, afirma.

Viver perto da natureza foi um chamado 5k5g5o
Cynthia Caiaffa dos Santos, 57 anos, é advogada e paulista de Santos, mas desde 2000 vive em Santa Catarina e há 18 anos, em Florianópolis. Cosmopolita, ou a maior parte de sua vida em grandes centros urbanos, como São Paulo e Roma. Em 1995, quando viajou a Florianópolis para visitar o irmão, que já morava há alguns anos na Capital, assim que o avião aterrissou, pela janela da aeronave, ficou comovida com a maravilhosa paisagem. E como diz um ditado, “quando o desejo vem da alma, o universo conspira e o desejo se realiza”.
Depois de anos vivendo em Florianópolis, sentiu que, apesar de amar estar pertinho do mar, poderia mudar. “O ambiente rural sempre me agradou, adoro temperaturas mais amenas, a brisa das montanhas e de trabalhar na terra. Comecei a buscar por uma casa na serra e me deparei com um recanto aconchegante, um friozinho bom e um povo educado aqui em Rancho Queimado”, conta.

Cynthia avalia que, além de a casa estar localizada em uma linda região, a proximidade com Florianópolis a fez “bater o martelo” para a tentativa de se adaptar ao lugar, inicialmente aos fins de semana e feriados. No entanto, logo sentiu vontade de permanecer cada vez por mais tempo na serra para desfrutar do clima, do ar puro e da tranquilidade. “Hoje moro no condomínio Sossego do Rancho, ‘um pedacinho do céu’, como costumam chamar os vizinhos condôminos, uma vizinhança muito simpática e colaborativa”.
Além do exercício da sua formação acadêmica, há 28 anos ela se dedica ao trabalho voluntário. “Gosto de estar com as pessoas e participar de suas experiências. Não considero um serviço de auxílio, mas de profunda troca e aprendizado. Talvez seja eu quem mais se beneficie”, afirma.
Uma das experiências que marcou sua vida foi ter trabalhado como voluntária por sete anos com moradores de rua em São Paulo, ajudando a distribuir comida, remédios e cuidando do bem-estar das pessoas necessitadas durante dois dias na semana.

Hoje, Cynthia segue como voluntária no Núcleo Espírita Nosso Lar/Centro de Apoio ao Paciente com Câncer, e também na Pastoral da Saúde da Paróquia de São Francisco de Paula, onde atua com plantas medicinais.
Formada também em fitoterapia e com pós-graduação em transformação de conflitos e estudos de paz, com foco no equilíbrio emocional, Cynthia começou a pensar mais seriamente em incluir essas “ferramentas” no seu trabalho, além daquelas que já tinha como mestra em reiki, terapeuta floral, aromaterapeuta e facilitadora de Qi Gong e meditação.
“Resolvi trazer todos esses conhecimentos para esse recanto da serra e assim sentir com muito mais força tudo o que as montanhas têm a oferecer. Tenho um pedaço de terra nas proximidades, onde darei início ao cultivo de ervas e especiarias”, comenta.
Há pouco menos de um ano, para dar vazão a todo esse conhecimento, Cynthia abriu no centrinho de Rancho Queimado um espaço denominado Cieve (Centro Integrativo de Estudos e Vivências para o Equilíbrio Emocional). O espaço foi pensado para aquelas pessoas que procuram estabilidade emocional por meio das práticas meditativas e diferentes terapias. “Não importa onde estejamos, carregamos conosco as nossas fragilidades e podemos dar bom sentido e direcionamento a elas, pois a luta é parte do processo de compreensão de quem realmente somos”.
Cynthia pontua que, em tempos de pandemia, viver no campo pode ser melhor, mas sua necessidade já havia se manifestado muito antes da situação que estamos vivendo. E acredita que esse período é o início de um novo tempo. “Na minha compreensão, estamos no limiar de uma nova forma de relações pessoais e com a natureza. Acredito que os últimos acontecimentos provocaram uma espécie de crise de consciência sobre o pensar e o atuar no mundo. Faço votos de que se resgate a simplicidade do viver, consolidando a solidariedade, produzindo comunidades mais colaborativas e conectadas entre si”, ressalta.
Segundo ela, se bem aproveitado, o isolamento social trará maior leveza e liberdade para as pessoas. “O crescimento como ser humano é possível, e suponho que cada vez mais será pela via do coração”, finaliza.